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Juan Ruiz e a Paródia Pictórica de Bosch e Bruegel

Nome do Autor:  Suely Reis Pinheiro

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suely@hispanista.com.br

Palavras-chave: paródia - pictórico - Medieval

Minicurrículo: Mestre em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas - UFRJ,  Doutora em Literaturas Espanhola e Hispano-Americana - USP, Membro da Associação Internacional de Hispanistas - AIH, Associação Brasileira de Estudos Medievais - ABREM e Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro - APEERJ, Editora e Diretora da revista Hispanista, Professora Doutora da UNIGRANRIO.

Resumo: Bosch e Bruegel prolongam um viés normativo que se evidencia na memória da cultura hispânica, ao retomarem, quase dois séculos depois, a temática da obra de Juan Ruiz, o Arcipreste de Hita. Ilustram esses artistas, parodicamente, em suas pinturas, a cena medieval, cheia de utopias e temores, ancorada na moral e na religião, fruto do pensamento "claroscuro" da Idade Média, no seu aspecto mais ambíguo.

Resumen: Bosch y Bruegel alargan una dirección mormativa que se evidencia en la memoria de la cultura hispánica, cuando reanudan, casi dos siglos después, la temática de la obra de Juan Ruiz, el Arcipreste de Hita. Los artistas ilustran, pues, en sus pinturas, paródicamente, la escena medieval, llena de utopía y temores, anclada en la moral y en la religión, fruto del pensamiento claroscuro de la Edad Media, en su aspecto más ambiguo.

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Este trabalho analisa uma das possibilidades de sobrevivência da imortal Idade Média, através do imaginário de dois pintores flamengos, Hieronymus Bosch (1450-1516) e Pieter Bruegel (1525-1569) e do escritor espanhol Juan Ruiz, cognominado Arcipreste de Hita. Estes artistas do pincel e da pena servem de elo para atualizar o que Jacques Le Goff afirma: história é transformação e memória, memória de um passado que não deixa de viver e de mudar sob os olhares de sucessivas sociedades (Le Goff, 1994, p.23).

Na obra miscelânica de mais de sete mil versos, Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz (DE HITA, 1984), a narrativa se faz na poética da equivocidade, no duplo sentido, na ambigüidade semântica, ao apresentar uma mistura dos aspectos mundanos, religiosos e morais. Em meio a picardias, burlas, filosofias e lamentações, sente-se seu veio divertido e moralizador, quando se pode observar um amplo repertório de possibilidades amorosas, onde o fio condutor ziguezagueia entre o amor espiritual e o amor carnal. 

O narrar oscila em torno de uma autobiografia fictícia em que o autor se apresenta como um galã, em meio a numerosas possibilidades amorosas. A pastora, a grande dama, a solteira, a casada, a moura, a religiosa são emolduradas por uma sucessão numerosa de variados personagens.

No decorrer do contar, alegre e divertido, onde os provérbios brotam em profusão, com forte apelo ao campo zoormófico, Juan Ruiz, como todo homem medieval, submetido à luz e à sombra da época, o denominado claro-oscuro, tem sobre si o Na verdade, com sua forte crença religiosa, com convém ao homem da Idade Média, acena, o Arcipreste, para a escolha do caminho do bem, acreditando no perdão divino, no exercício do menosprezo dos pecados terrestres. 

No tom didático e na ambigüidade carnavalesca que marcam o discurso poético de Juan Ruiz, o leitor intui várias intenções, a começar pela crítica à castidade profunda, já que, ensina o Arcipreste, a atividade amorosa é direito de todos. Tudo está sujeito ao buen amor posto em confronto com o loco amor. Buen amor seria o amor são, lícito, honesto, de Deus, que enobrece, que transfigura, que rejuvenesce, que transforma defeitos em virtudes. E o loco amor, o insano, não lícito, das fronteiras do adultério, do incesto e da bestialidade, ou seja, a luxúria. Nota-se, ainda, fortemente delineada, a presença da morte triunfante caminhando com o loco amor, a paixão pelos Diante disso, a obra indicia uma forte ironia em relação às questões eclesiásticas e religiosas que se estende ao campo social, tendo como foco, em suas críticas, os juízes, os cavaleiros, o mundo cortesão e, principalmente, sem fugir ao caráter ambíguo, a figura da mulher.

O claro-oscuro que aponta o dedo indicador para a mulher não se afasta dos milagres e das feitiçarias, mas como obra carnavalizada, Libro de Buen Amor se nutre do mundo às avessas não esquecendo, no seu contar, os apelos à Virgem Maria. 

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Vacila, pois, o Arcipreste de Hita, entre o místico e o prazeres terrenos, uma vez que o bem humorado autor começa o livro declarando que é inclinação do homem amar as mulheres, principalmente, as chicas, o que não faz dele uma exceção. A propósito, o que pode ser efetivamente comprovado, quando está por terminar o livro,  no primoroso poema Elogio a la mujer chica.

A polissemia constante embora torne a leitura difícil, faz com que seja apaixonante e incite o leitor a decifrar os vários enigmas que propõe.

Manuel Criado de Val em De la Edad Media al Siglo de Oro (CRIADO DE VAL, 1965) afirma que Juan Ruiz tem nos pintores flamengos Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, seus melhores discípulos, a melhor síntese pictórica de sua obra. De fato, retomam estes pintores, Bosch, aproximadamente um século depois e Bruegel, dois séculos, a temática medieval, cheia de utopias e temores, ancorada na moral e na religião, cenas do claro-oscuro, no seu aspecto mais ambíguo, realizando, com maestria, em suas telas, uma paródia de Libro de Buen Amor.

Com relação à estrutura da paródia feita por Bosch e Bruegel, pode-se considerar sua configuração em dois níveis. Primeiramente o que se constrói na leitura dialógica com Juan Ruiz e seu Libro de Buen Amor, quando aí se observa a polissemia temática que salta aos nossos olhos. Bosch, no final do século XV e Bruegel, em pleno XVI, pintam cenas e ambientes que estão fora do seu tempo, já que se anuncia, ou mesmo, se vive sob a tutela do Renascimento e da Escola Flamenga. Trazem, eles, de volta a Idade Média com seu ponto de vista focado para o muralismo e o colorido dos vitrais góticos e para a reminiscência da miniatura e das minúcias. No calor das fortes luzes e cores iluminam-se cenas campestres e familiares, reveladoras da vida cotidiana para falar de temas que não mais deveriam atemorizar ¾ os pecados, a morte e o medo do inferno. 

Oscilam, então, os famosos pintores, entre a tradição do gótico medieval, sem sua elegância e delicadeza, e as inovações da pintura flamenga renascentista, pautada na observação direta e objetiva do homem e da natureza, através de símbolos e convenções. 

O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, se consigna como um verdadeiro resumo feérico da mitologia e do folclore da Idade Média, onde se  entrecruzam falsas donzelas, cavaleiros, clero, mendigos, penitentes, caminhantes, imagens de santos, demônios, figuras grotescas, figuras esópicas, verdadeiro resgate paródico do combate de Don Carnal e Doña Cuaresma, os emblemáticos personagens de Juan Ruiz.

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A narrativa proverbial conta diferentes momentos na mesma composição, sintetizando o destino do homem pecador, mostrando o caminho da salvação, mas, ao mesmo tempo, ameaçando, conforme havia anunciado Dante na porta do inferno: Lasciate ogni speranza voi ch’ entrate.

O leitor atento sabe ler, na pluralidade de cenas, um tom didático que alerta o homem sobre seus pecados, mas que lhe mostra o caminho para a salvação. Esta diversidade policromática exprime-se através de uma iconografia fantástica, onde se alternam visões, superstições, símbolos e  alegorias.

O tríptico recupera o retábulo gótico e dirige seu foco para o primeiro pecado, o da luxúria, fortemente revelado nos painéis representativos da existência humana: o lar do homem antes do pecado original, o céu, suas atividades lascivas, a  terra, e o resultado de seus pecados, o inferno. Sob um céu, já não dourado como nas pinturas góticas, incandescido pelo fogo do inferno, as figuras se despem não só das vestimentas luxuosas, das pedras preciosas, mas também da pureza gótica e, em meio a símbolos fálicos, se  mostram nuas e transfiguradas, revelando, Bosch, com uma ferocidade caricatural, um mundo irreal por onde passam pesadelos que povoavam a alma do homem medieval. 

A ambigüidade que norteou o caminho literário de Juan Ruiz não está somente na produção de Bosch. A pintura aparentemente tranqüila e inocente que recorre o mundo idílico da Era Medieval traz, na narrativa pictural de Pieter Bruegel, verdades entrelinhadas no indiciante trabalho, Provérbios Flamengos. A sua inspiração se detém no aspecto folclórico, nos temas profanos e o pintor tinge sua tela de ilustrações visuais de provérbios que ultrapassam seu tempo. Contempla-se nesta bela tela, colorida, buliçosa, detalhadamente observada, o cotidiano das feiras, das tavernas, das casas familiares, das igrejas, do campo. 

Este quadro, aparentemente despretensioso e popular, uma das faces da pintura holandesa, anuncia que, enquanto a postura de dignidade do homem renascentista, cheio de conhecimentos e de clareza se ancora no ideal antropocêntrico, o povo continua na ignorância, perdido em meio às suas tolices, aos seus credos, à mercê dos poderosos e dos oportunistas.

Pode-se consignar que nos dois pintores desfaz-se, na escala de valores do Renascimento, o conceito otimista de que o homem se basta a si mesmo, enfocando-se o homem do povo, em prejuízo da aristocracia da corte, do clero e da nobreza.

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Na sua versão da história bíblica, a intrigante e complexa A Torre de Babel sugere várias interpretações: Bruegel reafirma a estupidez humana e sua presunção autoritária, proclama sua auto-suficiência, elogia a cooperação entre os homens ou está apenas pintando o desentendimento humano, reproduzido na caótica e inconclusa torre, resultado de um gigantesco, formigante e desnecessário labor. Este trabalho diverge do caminho tomado pela pintura flamenga, cujo olhar focava a vida do interior das casas, dos objetos familiares, da paisagem vista pela janela, dos retratos representativos da grandeza de caráter.

Tal como Bosch, Bruegel se lança na crua realidade da vida com humor rude e piedade ante a degradação humana. Ambos sabem desvendar os grandes pecados dos homens, a luxúria, a gula e a ganância e, assim, focar em primeiro plano o homem. Seus painéis moralistas são exemplos da insistência flamenga em expor a insensatez dos vícios humanos.

Na leitura transcontextualizada de Juan Ruiz, o descodificador percebe que também nos quadros dos citados pintores, o dialogismo adquire uma finalidade satírica, ridicularizando práticas e costumes contemporâneos, entretendo, mas alertando e instruindo os homens sobre a existência humana no plano social e pessoal. Eis o âmago da questão: no palco lírico da natureza de percepção flamenga, a mentalidade mística e visionária medieval adquire a mentalidade racionalista e científica. O homem é o centro, o tema é o homem. Estamos de volta ao Renascimento.

As pinturas de Bosch e Bruegel seguindo o “canto ao longo de” da paródia de Libro de Buen Amor prolongam, até nossos dias, um viés normativo,  calcado nos códigos da moral e dos bons costumes, que se evidencia na memória da cultura hispânica, tão bem ilustrados pelo medieval Juan Ruiz.

A natureza pródiga faz parte do universo pictoral de Bosch, cheio de plantas e animais familiares e desconhecidos, integradores de utopias da época medieval, de paz, de abundância e de simplicidade. O caprichoso Bosch, realista no detalhe, surrealista no conjunto, sobrevive na pintura surrealista moderna, efetivando-se, destarte, a cadeia de ligação entre a Idade Média e a Era Moderna.

Neste fim de século, quando queremos intercambiar, cada vez mais, conhecimentos e experiências, a teoria de recepção nos diz que tais artistas conseguiram expressar a dicotomia entre o ideal e a fragilidade humana. Suas memoráveis obras, por seu caráter vanguardista, ressoam e se abrem para o diálogo, nos permitindo pensar, às portas do terceiro milênio, questões da realidade atual, ainda cheia de grandes convulsões sociais e políticas, mas que continua alimentada por sonhos, lendas e utopias.

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BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1993.

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HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Lisboa: Edições 70, 1985.

LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Portugal: Editorial Estampa, 1994.

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